terça-feira, 26 de junho de 2012

As mãos - A Visão do conhecimento


A flor de lis, símbolo da inocência e da pureza, por sua forma e brancura, simboliza a energia amorosa, erótica. Ela brota do coração, Tiféret, sobe pela coluna vertebral, desce pelos ombros e espalha seu perfume nos dois braços ( zeroá , em hebraico), cuja extremidade de pérola é coroada por cada uma das mãos: um lado do rigor e da justiça ( Dion ou Guevurá) e o outro da graça e da misericórdia ( Chéssed).Mencionada numa grande variedade de usos literais e figurativos, a palavra mão é de longe a parte do corpo humano mais citada na Bíblia: 1.538 vezes, sendo 1.153 como iad.Como a letra Iud, do tetragrama IHWH, ela é ligada ao conhecimento:iada. As mãos representam na tradição judeu-cristão o conhecimento e o poder, as mãos falam de um conhecer material que é também amar.
Lavar as mãos
Águas e mãos enlaçam-se, encontram-se e desencontram-se na boa nova de Jesus. Observantes da Lei ficaram chocados com os discípulos e com Jesus ao não lavarem as mãos antes de comer. Não lavar as mãos antes das refeições evoca a coabitação com a impureza e a contaminação. Observantes dos Evangelhos ficam chocados com Pilatos lavando as mãos diante da pena de morte prestes a abater-se sobre Jesus, um galileu calado, ridicularizado, acusado e aparentemente sem culpa. Mãos úmidas ou desidratadas? Limpas ou sujas? Lavar ou não lavar as mãos? As mãos... uma realidade plural como as águas.
Existem várias maneiras de lavar os pés, as mãos e de lavar-se. Oito palavras hebraicas são empregadas no Primeiro Testamento no sentido de lavar e são traduzidas, em geral, por essa única palavra. São 111 empregos, dentre os quais predomina a expressão rahatz (reish-het-tzadi). O texto do Levítico, com todas suas regras e preceitos de higiene, santificação e pureza, é o grande campeão da lavagem: 54 citações. No Segundo Testamento são 31 empregos de lavar, através de nove palavras gregas diferentes. Sempre traduzidas por lavar, apesar de todas as diferenças e nuances existentes em episódios como quando as águas lavam e acariciam os pés dos discípulos (Jo 13,5-6); ou lavam as mãos de Pôncio Pilatos (Mt. 27,24); ou não lavam as mãos dos discípulos, antes de comer (Mt, 15,2.20; Mc. 7,2 - 5), nem lavam as mãos de Jesus antes de comer na casa de um fariseu e causam escândalo (Lc. 11,38); ou quando lavam o rosto ao jejuar-se (Mt 6,17); ou ainda, as redes dos pescadores pecadores (Lc 5,2).
“Eles vêem que alguns dos seus discípulos tomam as refeições com mãos impuras, isto é, sem as ter lavado. De fato, os fariseus, bem como todos os judeus, não comem sem ter lavado cuidadosamente (até o punho ou até o cotovelo) as mãos, por apego à tradição dos antigos; ao voltar do mercado, eles não comem sem ter feito abluções; e há muitas outras práticas tradicionais a que estão apegados: banhos, batismos, lavagens das taças, dos jarros e dos pratos” (Mc 7,2-4). Um sonho de higiene e cuidados com a saúde para sanitaristas, médicos e educadores, do qual ainda vive-se tão distante. Mas o tema corporal predominante é a lavagem das mãos. Tudo passa por elas, sempre lavadas junto com qualquer outra parte do corpo ou objeto.
Mencionada numa grande variedade de uso literais e figurativos, as mãos são a parte do corpo humano mais citada na Bíblia: 1538 vezes, sendo 1153 na expressão hebraica iad. Como a letra hebraica iud, do tetragrama IHWH, a mão é ligada ao conhecimento: iada, iodea. As mãos representam, na tradição judaica-cristã, o conhecimento e o poder. Elas evocam o braço e a autoridade. Ao deter as chaves do conhecimento, as mãos falam de um conhecer material que é também amar. Ao contrário do gesto simbólico de Jesus na cerimônia do lava pés, onde suas úmidas mãos acariciaram os pés dos discípulos, quando Pilatos lava suas mãos simboliza sua opção de não querer tomar conhecimento daquela realidade. Ele abdica de um conhecimento e de sua autoridade. Um erro gravíssimo. Simbolicamente, poder-se-ia beber as águas da bacia de Pilatos. Foi talvez o que fez sua mulher (Mt.27,19).
Existe um conhecimento do tocar, do ver pelas mãos. Os dois hemisférios cerebrais são inseparáveis das mãos. Jesus ressuscitado convida Tomé a tocar com suas mãos em suas mãos. O conhecer não é só cerebral. Tomé, não havia ficado trancado e refugiado, paralisado de medo como os outros discípulos. Tomé andava livre como o vento, pelas praças e ruas, anunciando seu mestre. Tomé tem direito a um contato especial, do qual os outros não participaram. Tomé conhece pelo tato. E deixa uma expressão eucarística, diante do sagrado: - Meu Senhor e meu Deus! As mãos são também o sopro do amor. Ao fazê-lo, Jesus entrega a Tomé uma chave da porta do toque espiritual, uma porta do conhecimento, um caminho para a porta dos céus 49.
A mão, comparada a um olho, vê. Estende-se as mãos para sentir a água e ver se está chovendo. A psicanálise tem essa mesma interpretação em muitos casos. Por isso, os cegos têm dedos luminosos. No símbolo da mão, o incognoscível se faz conhecer e torna-se visível. As mãos evocam um saber, capaz de evitar ao poder de tornar-se dominação. A mão é um emblema real, instrumento de preponderância, supremacia e sinal de domínio. Para a tradição judaica e cristã, as duas mãos, em profundidade, são uma só, e simbolizam a força koá (energia, potência, vigor). É comum as crianças israelitas levarem uma correntinha com uma pequena mão em ouro ou prata. Essa representação da mão também costuma ser colocada na entrada das casas.
A mão é uma síntese exclusivamente humana, do masculino e do feminino. Ela é passiva no que contém e ativa no que detém. Serve de arma e utensílio. Se prolonga pelos instrumentos. A mão diferencia o homem de todos os animais e serve para diferenciar os objetos ele tocados e modelados. Com água e terra, Deus molda o humano. Também o homem imprime seu caráter a tudo que faz. A experiência mostra: a mão, reflexo e extensão fiel do cérebro, exprime também as interações desse último com o exterior. Existe uma correspondência entre a mão esquerda e o hemisfério direito do cérebro (sede da compreensão global, intuitiva ou afetiva). À mão direita corresponderia mais o hemisfério esquerdo (sede das faculdades superiores como a dedução, a lógica, a linguagem e as manifestações voluntárias) 50. Na parábola do rico e do pobre Lázaro, o condenado imagina as mãos do pobre, no seio de Abrahão, como olhos comovidos, capazes de verterem uma lágrima, uma gota de água, para aplacar sua sede e seu tormento.
A tradição cristã fala das duas mãos do Pai agindo no mundo: a do Filho Verbo, estruturando como água e a do Espírito Santo, vivificando como sopro. As mãos dos homens agem no mundo, ou de forma banal ou em experiências cada vez mais profundas. Uma não é nada sem a outra. Seus limites são enormes. Todo homem nasce com as mão mirradas, secas. No caso de alguns líderes e pastores é ainda pior, o braço inteiro está ressequido (Zc 11,17). Somos manetas de nascença e não nos damos conta da secura de nossos gestos e existências 51. No caso do humano, o que o homem pode fazer está em suas mãos ou ao alcance de suas mãos. Nada mais. É sábado, shabat. Jesus entra na sinagoga e ensina. “Há ali um homem. Sua mão direita 52 está seca” (Lc. 6,6). Depois de interrogar a assembléia de saduceus e fariseus, Jesus “os olha à volta, todos, e lhe diz: ‘Estende tua mão!’ Ele o faz, e sua mão é restabelecida” (Lc. 6,10).Cristo cura em pleno Sábado. Sua demonstração é clara: o rigor da Lei, sem vida, é estéril. As águas da vida voltam a circular e a enriquecer um membro sem vida.
Nossas mãos estão secas e inoperantes. Lavá-las exteriormente é de pouca valia. Existe um caminho árduo de cura, árduo e frutuoso. Todo ser humano deve percorre-lo para recuperar suas mãos, vivas, livres e úmidas. As mãos secam sob a rigor das culpabilizações, diante de um excesso de dureza nos corações e de um encolhimento da vida. Jesus cura, propõe a superabundância da graça contra a esterilidade da lei e até dos comportamentos éticos. A ética é uma religião da lei. Os seres humanos podem escapar da seca culpabilização do existir ou do sentimento de ser culpado pelo simples fato de existir.
Recuperar as hidratadas mãos é também ser capaz de viver como humanos, solidários uns com os outros, superando a ambivalência das diabolizações recíprocas e das divinizações inumanas 53. Jesus restabelece a mão direita desse Homem. Livre da secura, hidratado, cheio de vida, agora ele pode tomar as chaves do conhecimento e penetrar no seu próprio mistério, como um soberano de si mesmo. Este evento deve ser vinculado ao episódio em que Jesus, mais uma vez entre saduceus e fariseus, afirma: “Ai de vós, instrutores da lei, porque tomastes a chave do conhecimento! Não entrais nele; e aqueles que entram, vós os impedis!” (Lc. 11,52)

Evaristo Eduardo de Miranda

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