As mãos - A Visão do conhecimento
A flor de lis, símbolo da inocência e da pureza, por sua forma e
brancura, simboliza a energia amorosa, erótica. Ela brota do coração,
Tiféret, sobe pela coluna vertebral, desce pelos ombros e espalha seu
perfume nos dois braços ( zeroá , em hebraico), cuja extremidade de
pérola é coroada por cada uma das mãos: um lado do rigor e da justiça (
Dion ou Guevurá) e o outro da graça e da misericórdia (
Chéssed).Mencionada numa grande variedade de usos literais e
figurativos, a palavra mão é de longe a parte do corpo humano mais
citada na Bíblia: 1.538 vezes, sendo 1.153 como iad.Como a letra Iud, do
tetragrama IHWH, ela é ligada ao conhecimento:iada. As mãos representam
na tradição judeu-cristão o conhecimento e o poder, as mãos falam de um
conhecer material que é também amar.
Lavar as mãos
Águas e mãos enlaçam-se, encontram-se e desencontram-se na boa nova
de Jesus. Observantes da Lei ficaram chocados com os discípulos e com
Jesus ao não lavarem as mãos antes de comer. Não lavar as mãos antes das
refeições evoca a coabitação com a impureza e a contaminação.
Observantes dos Evangelhos ficam chocados com Pilatos lavando as mãos
diante da pena de morte prestes a abater-se sobre Jesus, um galileu
calado, ridicularizado, acusado e aparentemente sem culpa. Mãos úmidas
ou desidratadas? Limpas ou sujas? Lavar ou não lavar as mãos? As mãos...
uma realidade plural como as águas.
Existem várias maneiras de lavar os pés, as mãos e de lavar-se. Oito
palavras hebraicas são empregadas no Primeiro Testamento no sentido de
lavar e são traduzidas, em geral, por essa única palavra. São 111
empregos, dentre os quais predomina a expressão rahatz
(reish-het-tzadi). O texto do Levítico, com todas suas regras e
preceitos de higiene, santificação e pureza, é o grande campeão da
lavagem: 54 citações. No Segundo Testamento são 31 empregos de lavar,
através de nove palavras gregas diferentes. Sempre traduzidas por lavar,
apesar de todas as diferenças e nuances existentes em episódios como
quando as águas lavam e acariciam os pés dos discípulos (Jo 13,5-6); ou
lavam as mãos de Pôncio Pilatos (Mt. 27,24); ou não lavam as mãos dos
discípulos, antes de comer (Mt, 15,2.20; Mc. 7,2 - 5), nem lavam as mãos
de Jesus antes de comer na casa de um fariseu e causam escândalo (Lc.
11,38); ou quando lavam o rosto ao jejuar-se (Mt 6,17); ou ainda, as
redes dos pescadores pecadores (Lc 5,2).
“Eles vêem que alguns dos seus discípulos tomam as refeições com mãos
impuras, isto é, sem as ter lavado. De fato, os fariseus, bem como
todos os judeus, não comem sem ter lavado cuidadosamente (até o punho ou
até o cotovelo) as mãos, por apego à tradição dos antigos; ao voltar do
mercado, eles não comem sem ter feito abluções; e há muitas outras
práticas tradicionais a que estão apegados: banhos, batismos, lavagens
das taças, dos jarros e dos pratos” (Mc 7,2-4). Um sonho de higiene e
cuidados com a saúde para sanitaristas, médicos e educadores, do qual
ainda vive-se tão distante. Mas o tema corporal predominante é a lavagem
das mãos. Tudo passa por elas, sempre lavadas junto com qualquer outra
parte do corpo ou objeto.
Mencionada numa grande variedade de uso literais e figurativos, as
mãos são a parte do corpo humano mais citada na Bíblia: 1538 vezes,
sendo 1153 na expressão hebraica iad. Como a letra hebraica iud, do
tetragrama IHWH, a mão é ligada ao conhecimento: iada, iodea. As mãos
representam, na tradição judaica-cristã, o conhecimento e o poder. Elas
evocam o braço e a autoridade. Ao deter as chaves do conhecimento, as
mãos falam de um conhecer material que é também amar. Ao contrário do
gesto simbólico de Jesus na cerimônia do lava pés, onde suas úmidas mãos
acariciaram os pés dos discípulos, quando Pilatos lava suas mãos
simboliza sua opção de não querer tomar conhecimento daquela realidade.
Ele abdica de um conhecimento e de sua autoridade. Um erro gravíssimo.
Simbolicamente, poder-se-ia beber as águas da bacia de Pilatos. Foi
talvez o que fez sua mulher (Mt.27,19).
Existe um conhecimento do tocar, do ver pelas mãos. Os dois
hemisférios cerebrais são inseparáveis das mãos. Jesus ressuscitado
convida Tomé a tocar com suas mãos em suas mãos. O conhecer não é só
cerebral. Tomé, não havia ficado trancado e refugiado, paralisado de
medo como os outros discípulos. Tomé andava livre como o vento, pelas
praças e ruas, anunciando seu mestre. Tomé tem direito a um contato
especial, do qual os outros não participaram. Tomé conhece pelo tato. E
deixa uma expressão eucarística, diante do sagrado: - Meu Senhor e meu
Deus! As mãos são também o sopro do amor. Ao fazê-lo, Jesus entrega a
Tomé uma chave da porta do toque espiritual, uma porta do conhecimento,
um caminho para a porta dos céus 49.
A mão, comparada a um olho, vê. Estende-se as mãos para sentir a água
e ver se está chovendo. A psicanálise tem essa mesma interpretação em
muitos casos. Por isso, os cegos têm dedos luminosos. No símbolo da mão,
o incognoscível se faz conhecer e torna-se visível. As mãos evocam um
saber, capaz de evitar ao poder de tornar-se dominação. A mão é um
emblema real, instrumento de preponderância, supremacia e sinal de
domínio. Para a tradição judaica e cristã, as duas mãos, em
profundidade, são uma só, e simbolizam a força koá (energia, potência,
vigor). É comum as crianças israelitas levarem uma correntinha com uma
pequena mão em ouro ou prata. Essa representação da mão também costuma
ser colocada na entrada das casas.
A mão é uma síntese exclusivamente humana, do masculino e do
feminino. Ela é passiva no que contém e ativa no que detém. Serve de
arma e utensílio. Se prolonga pelos instrumentos. A mão diferencia o
homem de todos os animais e serve para diferenciar os objetos ele
tocados e modelados. Com água e terra, Deus molda o humano. Também o
homem imprime seu caráter a tudo que faz. A experiência mostra: a mão,
reflexo e extensão fiel do cérebro, exprime também as interações desse
último com o exterior. Existe uma correspondência entre a mão esquerda e
o hemisfério direito do cérebro (sede da compreensão global, intuitiva
ou afetiva). À mão direita corresponderia mais o hemisfério esquerdo
(sede das faculdades superiores como a dedução, a lógica, a linguagem e
as manifestações voluntárias) 50. Na parábola do rico e do pobre Lázaro,
o condenado imagina as mãos do pobre, no seio de Abrahão, como olhos
comovidos, capazes de verterem uma lágrima, uma gota de água, para
aplacar sua sede e seu tormento.
A tradição cristã fala das duas mãos do Pai agindo no mundo: a do
Filho Verbo, estruturando como água e a do Espírito Santo, vivificando
como sopro. As mãos dos homens agem no mundo, ou de forma banal ou em
experiências cada vez mais profundas. Uma não é nada sem a outra. Seus
limites são enormes. Todo homem nasce com as mão mirradas, secas. No
caso de alguns líderes e pastores é ainda pior, o braço inteiro está
ressequido (Zc 11,17). Somos manetas de nascença e não nos damos conta
da secura de nossos gestos e existências 51. No caso do humano, o que o
homem pode fazer está em suas mãos ou ao alcance de suas mãos. Nada
mais. É sábado, shabat. Jesus entra na sinagoga e ensina. “Há ali um
homem. Sua mão direita 52 está seca” (Lc. 6,6). Depois de interrogar a
assembléia de saduceus e fariseus, Jesus “os olha à volta, todos, e lhe
diz: ‘Estende tua mão!’ Ele o faz, e sua mão é restabelecida” (Lc.
6,10).Cristo cura em pleno Sábado. Sua demonstração é clara: o rigor da
Lei, sem vida, é estéril. As águas da vida voltam a circular e a
enriquecer um membro sem vida.
Nossas mãos estão secas e inoperantes. Lavá-las exteriormente é de
pouca valia. Existe um caminho árduo de cura, árduo e frutuoso. Todo ser
humano deve percorre-lo para recuperar suas mãos, vivas, livres e
úmidas. As mãos secam sob a rigor das culpabilizações, diante de um
excesso de dureza nos corações e de um encolhimento da vida. Jesus cura,
propõe a superabundância da graça contra a esterilidade da lei e até
dos comportamentos éticos. A ética é uma religião da lei. Os seres
humanos podem escapar da seca culpabilização do existir ou do sentimento
de ser culpado pelo simples fato de existir.
Recuperar as hidratadas mãos é também ser capaz de viver como
humanos, solidários uns com os outros, superando a ambivalência das
diabolizações recíprocas e das divinizações inumanas 53. Jesus
restabelece a mão direita desse Homem. Livre da secura, hidratado, cheio
de vida, agora ele pode tomar as chaves do conhecimento e penetrar no
seu próprio mistério, como um soberano de si mesmo. Este evento deve ser
vinculado ao episódio em que Jesus, mais uma vez entre saduceus e
fariseus, afirma: “Ai de vós, instrutores da lei, porque tomastes a
chave do conhecimento! Não entrais nele; e aqueles que entram, vós os
impedis!” (Lc. 11,52)
Evaristo Eduardo de Miranda
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