Os Três Refúgios
Os Três Refúgios
Aquele que está desperto, que sabe, que compreende, é
chamado de Buda. Ele existe em todos nós. Podemos nos tornar despertos,
compreensivos e também amorosos. Eu sempre digo às crianças que se os
pais delas são compreensivos e amorosos, trabalhando, tomando conta da
família, sorrindo, sendo amáveis como uma flor, elas podem dizer: Mamãe e
papai, vocês hoje são Budas plenos.
Há 2.500 anos atrás existiu uma pessoa que praticou
isso de tal forma que seu entendimento e amor tornaram-se perfeitos, e
todos no mundo reconheceram isso. Seu nome era Siddhartha. Era muito
jovem ainda, quando começou a ver que a vida contém muito sofrimento;
que as pessoas não amam umas às outras; não se compreendem
suficientemente. Deixou então o seu lar e foi para a floresta praticar
meditação, respiração e sorriso. Ele se tomou monge tentou praticar, a
fim de desenvolver seu despertar, sua compreensão e amor ao mais alto
nível.
Praticou meditação sentada e andando por vários anos,
juntamente com mais cinco amigos que também eram monges. Embora fossem
inteligentes, cometeram erros. Por exemplo, eles comiam somente uma
fruta - manga, goiaba ou carambola - por dia. As pessoas às vezes
exageram dizendo que Siddhartha comia apenas um grão de gergelim por
dia. Eu estive na Índia, na floresta em que ele praticava, e sei que
isso é bobagem; pois lá não há gergelim. Estive também no rio Anoma,
onde ele se banhou várias vezes, e também na árvore Bodhi, sob a qual
ele se sentou e se tomou um Buda. A árvore Bodhi que eu vi é a
tataraneta da primeira árvore Bodhi. (...)
Quando dizemos: Eu me refugio em Buda, deveríamos
entender também o Buda se refugia em mim; porque sem a segunda parte, a
primeira não é completa. Buda necessita de nós para que o despertar, o
amor e a compreensão possam se tornar reais e não meros conceitos. Essas
coisas devem ter efeitos concretos na vida. Sempre que eu digo: Eu me
refugio em Buda, ouço: Buda se refugia em mim. Esta é uma poesia para
quando se plantar uma árvore ou qualquer outra planta:
Eu me confio à terra,
A terra se confia a mim.
Eu me confio ao Buda
O Buda se confia a mim.
Eu me confio à terra. É como: Eu me refugio no Buda (Eu
me identifico com as plantas). A planta vive ou morre em função da
terra. A planta se refugia na terra, no solo. E a terra se confia a mim,
porque cada folha que cal e se decompõe torna o solo mais rico. Nós
sabemos que a camada mais rica e bonita do solo é formada pela
vegetação. Nossa Terra é verde e bela por causa da vegetação.
Assim, da mesma forma que o verde precisa da Terra, a
Terra precisa da vegetação para expressar-se como um planeta belo.
Assim, quando dizemos Eu me confio à terra, eu, que sou planta, devo
ouvir também a outra versão: a terra se confia a mim. Eu me confio ao
Buda, o Buda se confia a mim. Isso torna bem claro que a sabedoria, a
compreensão e o amor de Shakyamuni Buda precisam de nós para se tornarem
outra vez realidade. Assim, nossa tarefa é muito importante: realizar o
estado desperto, realizar a compaixão, realizar o entendimento. Todos
nós somos Budas, porque só através de nós é que a compreensão e o amor
se tomam tangíveis e efetivos.
Thich Thanh Van foi morto durante seu empenho em ajudar
os outros. Ele foi um bom budista, um bom Buda, porque foi capaz de
ajudar dezenas de milhares de pessoas vítimas da guerra. Através dele o
despertar, a compreensão e o amor se tomaram reais. Podemos, pois,
chamá-lo de buddhakaya, o que em sânscrito significa corpo de Buda. Para
o budismo ser real é necessário que haja um buddhakaya, ou seja, uma
personificação da atividade desperta. De outra forma o budismo é apenas
uma palavra. Thich Thanh Van era buddhakaya. Shakyamuni Buda era um
buddhakaya. Ao realizar o ato de despertar, compreender e amar, cada um
de nós é buddhakaya.
A segunda jóia é o Dharma, isto é, o que Buda ensinou. É
o caminho da compreensão e amor - como entender, como amar, como
transformar essas coisas numa realidade. Antes de morrer, Buda disse aos
seus discípulos: - Meus caros, meu corpo físico não estará mais aqui
amanhã, mas o corpo do meu ensinamento estará sempre aqui para
ajudá-los. Considerem-no como seu mestre, um mestre que jamais se separa
de vocês.
Esse foi o nascimento do dharmakaya. O Dharma tem um
corpo, o corpo dos ensinamentos ou o corpo do caminho. Como você pode
ver o significado de dharmakaya é muito simples, embora as pessoas o
tenham tornado complicado. Dharmakaya significa apenas os ensinamentos
de Buda, a forma de realizar a compreensão e o amor. Mais tarde
tornou-se uma espécie de fundamento ontológico do ser.
Qualquer coisa pode ajudar a despertar sua natureza
búdica. Quando estou só e algum pássaro me chama, retorno a mim mesmo,
respiro e sorrio e, às vezes, ele volta a me chamar. Então sorrio e
respondo: - Já estou ouvindo-o. Não só os sons como também as paisagens
podem relembrá-los de retornarem a si mesmos. Ao abrir a janela de manhã
e ver a luz inundar o ambiente, você pode reconhecer isso como a voz do
Dharma, e isso se torna parte do dharmakaya.
Essa é a razão por que as pessoas despertas vêem a
manifestação do Dharma em todas as coisas. Num seixo, num bambu, no
choro de uma criança, qualquer coisa pode ser a voz do Dharma chamando.
Nós devíamos ser capazes de praticar dessa forma.
Certa vez um monge se dirigiu a Tue Trung, o mais
Ilustre professor de budismo no Vietnã no século XIII, tempo em que o
budismo florescia no país: - O que é dharmakaya puro, imaculado? -
perguntou o monge. E Tue Trung apontou-lhe o excremento de um cavalo.
Essa foi uma abordagem irreverente do dharmakaya, porque as pessoas
estavam usando a palavra imaculado para descrevê-lo. Você não
pode usar palavras para descrever o dharmakaya. Mesmo que se diga que é
imaculado, puro, Isso não significa que ele seja separado das coisas que
são impuras. A realidade última está além dos adjetivos puro e impuro.
De modo que sua resposta foi para sacudir a mente do monge, para fazê-lo
desvencilhar-se de todos os adjetivos e assim poder enxergar a natureza
do dharmakaya.
Um mestre também é parte do dharmakaya, porque ele nos
ajuda a despertar. Sua aparência, sua forma de viver o dia-a-dia, sua
forma de lidar com as pessoas animais, plantas, nos ajudam a atingir o
entendimento e o amor em nossa vida. Existem muitas formas de ensinar:
por livros, por palavras, por fitas gravadas. Eu tenho um amigo que é
mestre Zen no Vietnã; é muito conhecido, mas não são muitas pessoas que
podem estudar com ele. Por isso, fazem gravações de suas palestras e ele
passou a ser conhecido como o monge K-7.
Mesmo que não ensine, simplesmente sendo ele nos ajuda a
despertar, porque ele é parte do dharmakaya. Este não é expresso só por
palavras, por sons. Pode expressar-se simplesmente sendo. Às vezes
ajudamos mais quando não fazemos nada do que quando fazemos muito.
Chamamos isso de não-ação. É como a pessoa calma no barco em meio à
tempestade. Essa pessoa não precisa fazer muito, basta ser como é, e a
situação muda. Esse é também um dos aspectos do dharmakaya: sem falar,
sem ensinar; apenas sendo.
Essa verdade concerne não somente aos seres humanos,
mas também a outras espécies. Olhe para as árvores do pátio. Um carvalho
é um carvalho. Isso é tudo o que ele tem a fazer. Agora, se o carvalho é
menos que um carvalho, então todos nós estamos em dificuldades.
Portanto, o carvalho está pregando o Dharma. Sem fazer nada sem servir
na Escola da Juventude para Serviços Sociais, sem pregar, sem mesmo
sentar em meditação; o carvalho nos é muito útil, simplesmente por
existir. Toda vez que olhamos para um carvalho, ganhamos confiança.
Durante o verão sentamos sob ele e nos refrescamos nos sentimos
relaxados. Sabemos que se o carvalho e as outras árvores não existissem,
não teríamos ar bom para respirar.
Sabemos também que em nossas vidas anteriores fomos
árvores. Pode ser mesmo que tenhamos sido um carvalho. Isso não é só
budismo, isso é científico. O ser humano é uma espécie muito nova, nós
aparecemos na terra só recentemente. Antes disso éramos rocha, gás
minerais e depois seres unicelulares. Agora nos tornamos seres humanos.
Temos que nos relembrar de nossas existências passadas. Isso não é
difícil. Apenas sente, respire e observe; e você poderá ver suas
existências passadas. O carvalho não sofre quando o xingamos. Quando o
elogiamos tampouco levanta o nariz. Podemos aprender o Dharma com o
carvalho; portanto, ele é parte do nosso dharmakaya. Podemos aprender de
tudo o que existe em todos e dentro de nós. Mesmo que não estejamos num
centro de meditação, podemos praticar em casa, porque o Dharma está
presente em torno de nós. Tudo prega o Dharma. Cada seixo, cada folha,
cada flor está pregando o Sadharma Pundarika Sutra.
Sangha é a comunidade que vive consciente e em
harmonia. Sanghakaya é um novo termo em sânscrito. A sangha também
precisa de um corpo. Quando você está com sua família e pratica
respiração e sorriso, reconhecendo o corpo de Buda em você e em seus
filhos então sua família se toma uma sangha. Se você tiver um sino em
seu lar este se toma parte de seu sanghakaya, porque o sino ajuda-o a
praticar: Se você tiver um zafu, este também torna-se parte do
sanghakaya.
Muitas coisas podem nos ajudar a praticar. O ar para
respirar. Se tiver um parque ou um rio perto de sua casa, sorte sua:
porque você pode aproveitar para praticar meditação andando. Você mesmo
tem que descobrir seu sanghakaya, convidando um amigo, para praticar com
você na meditação do chá; ou sentando com você ou acompanhando-o na
meditação andando. Todos esses esforços são para estabelecer seu
sanghakaya em casa. É mais fácil praticar quando se tem um sanghakaya.
Antes de ter se tornado Buda, Siddhartha foi deixado
pelos cinco monges que o acompanhavam, quando começou a tomar leite.
Assim, ele fez da árvore Bodhi seu sanghakaya. Fez do menino-
dos-búfalos, da leiteira do rio, das árvores, seu sanghakaya. Existem no
Vietnã pessoas que vivem em campos de reeducação. Elas não têm uma
sangha; não têm um centro Zen. Mas praticam. Elas têm que olhar outras
coisas como parte de seu sanghakaya. Conheço pessoas que praticam
meditação andando dentro de suas celas na prisão. Elas me contaram isso
depois de terem sido libertadas. Portanto, nós que temos a sorte de
poder contar com tantas coisas para estabelecer nosso sanghakaya não
devemos deixar de fazê-lo. Um amigo, nossos filhos, nosso próprio irmão
ou irmã, nosso lar, as árvores do nosso pátio, tudo isso pode ser parte
do nosso sanghakaya.
A prática do budismo, a prática da meditação é para a
pessoa se tornar serena, compreensiva e amorosa. Desta forma trabalhamos
pela paz de nossa família, de nossa sociedade. Se olharmos mais de
perto, veremos que as três jóias são, na verdade, uma. Em cada uma delas
as outras duas estão presentes.
Em Buda existe o estado búdico, existe o corpo de Buda.
Em Buda existe o corpo do dharma, porque sem este ele não poderia se
tornar Buda. Em Buda está o corpo da sangha, porque ele fez seu desjejum
junto à árvore Bodhi, a outras árvores e pássaros da região. Num centro
de meditação temos um corpo de sangha, sanghakaya, porque ali é
praticada a compreensão, a compaixão. Assim, o corpo do Dharma, o
caminho e os ensinamentos estão presentes. Mas os ensinamentos não podem
tornar-se uma realidade sem a nossa vida e corpo. De forma que
buddhakaya também está presente. Se Buda e Dharma não estiverem
presentes, não existe sangha.
Sem você, Buda não é uma realidade, mas apenas uma
idéia. Sem você, o Dharma não pode ser praticado. Precisa ter alguém
para poder ser praticado. A sangha não pode existir sem cada um de
vocês. Por isso, quando dizemos:
Eu me refugio em Buda, ouvimos também: Buda se refugia em mim.
Eu me refugio no Dharma. O Dharma se refugia em mim.
Eu me refugio na sangha; a sangha se refugia em mim.
(Do livro “Caminhos para a paz interior” – Thich Nhat Hanh)
Sangha Virtual Estudos Budistas
Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh
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