Estudo mostrou que parentes e amigos daqueles que caminhavam sobre as brasas tiveram batimentos quase idênticos ao do caminhante
Até onde os moradores da pequena vila espanhola de San Pedro Manrique conseguem se lembrar, o povo dali caminha sobre o fogo.
Eles o fazem todo 23 de junho, à meia-noite, celebrando o solstício de verão ao cruzar um tapete de 7 metros de brasas de carvalho – que, após horas queimando, adquiriram um vermelho incandescente. O evento é repleto de pompa e simbolismo: procissões com estátuas religiosas, trombetas soando antes de cada caminhada sobre o fogo, e três virgens (atualmente, três mulheres solteiras).
Assim, quando cientistas quiseram medir o efeito fisiológico de andar sobre brasas para ver se havia escoras biológicas de rituais populares, eles encontraram alguns obstáculos.
“Falamos em medir a pressão arterial, os níveis de cortisona, a tolerância à dor”, contou Ivana Konvalinka, doutoranda em bioengenharia da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, que liderou a equipe. “Falamos até mesmo da ocitocina”, hormônio vinculado ao prazer.
Mas com a dificuldade de se obter tais leituras, eles se conformaram com os batimentos cardíacos – prendendo monitores nos “caminhantes” e espectadores, para ver se os batimentos do público aumentariam como o das pessoas caminhando descalças sobre brasas.
Porém, até mesmo persuadir as pessoas a usar monitores cardíacos não foi fácil. Antes de chegar, a equipe de pesquisa com antropólogos, psicólogos e especialistas em religiões havia recebido a permissão do prefeito de San Pedro Manrique. Depois ele hesitou, segundo Konvalinka.
“Ele nos disse que, se conseguíssemos recrutar pessoas, então tudo bem”, afirmou ela, “mas ele não aprovava e disse às pessoas que não participassem”.
Algumas pessoas desistiram ou se recusaram, incluindo aquelas que os caminhantes do fogo carregavam nas costas – grupo que os pesquisadores haviam pensado em monitorar. Mas outros abordaram os pesquisadores de última hora. Finalmente, eles monitoraram 12 caminhantes e 17 espectadores que estavam apenas visitando. O prefeito também pediu que os monitores fossem escondidos, ficando invisíveis à multidão que preencheu o anfiteatro especial da cidade para o evento, construído para 3 mil pessoas – cinco vezes o número de moradores locais.
Os pesquisadores queriam investigar o que atrai as pessoas a rituais públicos como a caminhada sobre brasas. “Existe a ideia de que os rituais aumentam a coesão do grupo, mas o que cria esse grupo?” questionou Konvalinka. “Supusemos a existência de algum tipo de medição autônoma do sistema nervoso que pudesse capturar os efeitos emocionais do ritual”.
Os resultados surpreenderam a todos. Os batimentos de parentes e amigos dos caminhantes sobre as brasas seguiram um padrão quase idêntico aos batimentos dos próprios caminhantes, subindo e descendo quase em sincronia – o que não ocorreu com os batimentos dos espectadores visitantes. Os batimentos de parentes se mantiveram sincronizados ao longo do evento, que durou 30 minutos, com 28 participantes realizando travessias de 5 segundos. Os batimentos cardíacos de parentes e amigos se igualaram aos dos participantes o tempo todo – antes, durante e após as travessias. Mesmo pessoas ligadas a outros caminhantes demonstraram padrões similares.
Especialistas não envolvidos no estudo disseram que, apesar do número reduzido de participantes, os resultados eram intrigantes. Eles agregam a pesquisas mostrando os batimentos de fãs de esportes de equipe quando seus times marcam e estudos demonstrando que pessoas em cadeiras de balanço ou batucando os dedos eventualmente sincronizam seus movimentos.
“É apenas um estudo, mas é muito bom”, disse Michael Richardson, professor-assistente de psicologia da Universidade de Cincinnati. “Ela mostra que a conexão a outras pessoas não ocorre apenas na mente. Há esses momentos comportamentais fisiológicos, dos quais não estamos cientes, ocorrendo continuamente com outras pessoas. Existe uma sólida fundação de pesquisas laboratoriais que é completamente consistente com suas descobertas. É sempre difícil conduzir esses estudos no mundo real. Este é o primeiro caso de sucesso em escala relativamente grande, numa situação natural”.
Richard Sosis, professor de antropologia da Universidade de Connecticut, afirmou que o estudo era “bastante empolgante”, contradizendo a “suposição de que os rituais produzem coesão e solidariedade apenas quando há compartilhamento de vocalizações, movimentos e ritmos” – atividades como cantar, dançar ou marchar em conjunto. Com o caminhar sobre brasas, os espectadores apenas observavam, sem compartilhar qualquer atividade ou ritmo com os participantes. E diferentes tipos de espectadores mostraram resultados distintos, com os locais em sincronia, mas não os visitantes.
Segundo Sosis, coeditor de uma nova publicação, “Religion, Brains and Behavior”, pode haver paralelos com rituais mais comuns, como casamentos, batismos ou bar mitzvahs. Ele citou um experimento em que Paul Zak, neuroeconomista, compareceu a um casamento e mediu os níveis de ocitocina da noiva, do noivo e de alguns parentes e amigos, descobrindo que muitos deles experimentaram picos de ocitocina – como se possuíssem um vínculo com o casal.
David Willey, físico da Universidade de Pittsburgh, em Johnstown, pratica a caminhada sobre brasas. Ele argumenta que a prática geralmente não queima, pois as brasas não transmitem calor suficiente em seu breve contato com os pés. A sincronização dos batimentos cardíacos faz sentido, disse ele, comentando seus encontros de caminhar sobre o fogo – onde “existe um acentuado sentimento de grupo”.
Pesquisadores podem encontrar sincronizações similares em outros rituais provocativos, como “dobrar barras de aço com o pescoço, caminhar sobre cacos de vidro e bungee jump”, declarou. “Eles podem vir ao meu quintal, se quiserem”.
Konvalinka declarou que a equipe pretende conduzir outro estudo sobre o caminhar em brasas, desta vez nas Ilhas Maurício. Mas também poderão retornar a San Pedro Manrique. “No final das contas”, disse ele, “acho que o prefeito não ligou de estarmos lá”.
Fonte: Último Segundo/The NYT
Nenhum comentário:
Postar um comentário