Diferentes Tipos de Amor
O Rei Pasenadi olhou para o Buda. Ele ficou impressionado. O Buda
falou com voz calma e quieta e o que disse foi ao mesmo tempo simples e
profundo. O rei sentiu que podia confiar no Buda e então perguntou o que
o estava angustiando.
“Mestre Gautama, há pessoas que dizem que você aconselha às pessoas a
não amarem. Eles dizem que quanto mais uma pessoa ama, mas sofrerá e se
desesperará. Posso ver alguma verdade nessa afirmativa, mas não consigo
encontrar paz com ela. Sem amor, a vida pareceria vazia de significado.
Por favor, me ajude a resolver isso.”
O Buda olhou para o rei de forma acolhedora. “Majestade sua questão é
muito boa, e muitos podem se beneficiar dela. Há muitos tipos de amor.
Deveríamos examinar em detalhes a natureza de cada tipo de amor. A vida
tem grande necessidade da presença de amor, mas não do tipo de amor que é
baseado na luxúria, paixão, apego, discriminação e preconceito.
Majestade há outro tipo de amor, extremamente necessário, que consiste
de bondade amorosa e compaixão, ou maitri e karuna.”
“Usualmente quando as pessoas falam de amor eles se referem apenas ao
amor que existe entre pais e filhos, maridos e esposas, membros da
família, casta ou país. Devido à natureza deste amor depender do
conceito de ‘eu’ e ‘meu’, ele permanece misturado com apego e
discriminação. As pessoas querem apenas amar seus pais, esposos, filhos,
netos, seus parentes e compatriotas. Como são capturados pelo apego,
eles se preocupam com acidentes que podem acontecer a seus amados mesmo
antes deles ocorrerem. Quando esses acidentes ocorrem, eles sofrem
terrivelmente. O amor que é baseado na discriminação produz preconceito.
As pessoas se tornam indiferentes ou mesmo hostis àqueles fora de seu
círculo de amor. Apego e discriminação são fontes de sofrimento para nós
mesmos e para os outros. Majestade, o amor pelo qual todos os seres
estão verdadeiramente famintos é a bondade amorosa e a compaixão. “
“Maitri é o amor que tem a capacidade de levar felicidade para outro. Karuna é o amor que tem a capacidade de remover o sofrimento do outro. Maitri e karuna
não exigem nada em troca. Bondade amorosa e compaixão não estão
limitadas aos pais, esposos, filhos, parentes, membros da casta e
compatriotas. Eles se estendem a todas as pessoas e todos os seres. Em maitri e karuna não há discriminação, não há ‘meu’ e ‘não meu’. E como não há discriminação, não há apego. Maitri e karuna
trazem felicidade e aliviam o sofrimento. Eles não causam sofrimento ou
desespero. Sem eles, a vida seria vazia de significado, como você
disse. Com bondade amorosa e compaixão, a vida é preenchida de paz,
alegria, e contentamento. Majestade, você é o dirigente de todo um país.
Todas as pessoas se beneficiariam de sua prática de bondade amorosa e
compaixão.”
O rei inclinou sua cabeça pensando. Ele olhou ao Buda e perguntou,
“Eu tenho uma família para cuidar e um país para dirigir. Se eu não
amasse minha família e povo, como poderia cuidar deles? Por favor,
esclareça para mim.”
“Naturalmente você deve amar sua própria família e povo. Mas seu amor
pode também se estender para além de sua família e povo. Você ama e
cuida do príncipe e da princesa, mas isso não o impede de amar e cuidar
de outros jovens no reino. Se puder amar todos os jovens, seu amor
atual, que é limitado, se tornará um amor inclusivo e todos os jovens do
reino serão seus filhos. Isto é o que significa ter um coração de
compaixão. Não é apenas um ideal. É algo que pode ser realizado,
especialmente por alguém como você que tem tantos meios a disposição.”
“Mas e sobre os jovens dos outros reinos?”
“Nada o impede de amar os jovens de outros reinos como se fossem seus
filhos mesmo que eles não habitem sob sua jurisdição. Apenas porque
alguém ama seu povo não é razão para não amar povos de outros reinos.”
“Mas como posso mostrar meu amor por eles se não estão sob minha jurisdição?”
O Buda olhou para o rei. “A prosperidade e segurança de uma nação não
deveria depender da pobreza e insegurança das outras nações. Majestade,
paz duradoura e prosperidade são apenas possíveis quando as nações se
juntam em um comprometimento comum para procurar o bem estar de todos.
Se você quer que Kosara realmente desfrute de paz e que os jovens do seu
reino não percam a vida nos campos de batalha, você deve ajudar aos
outros reinos a achar paz. As políticas externas e econômicas devem
seguir o caminho da compaixão para a paz verdadeira ser possível. Ao
mesmo tempo, enquanto você ama e cuida de seu próprio reino, você pode
amar outros reinos como Magadha, Kasi, Videha, Sakya e Lokya.”
“Majestade, ano passado eu visitei minha família no reino de Sakya.
Eu descansei muitos dias em Arannakutika aos pés do Himalaya. Lá eu
fiquei muito tempo refletindo sobre uma política baseada na
não-violência. Eu vi que nações podem de fato desfrutar de paz e
segurança sem ter que recorrer a métodos violentos tais como prisões e
execuções. Eu falei dessas coisas ao meu pai, rei Suddhodana. Agora eu
aproveito essa oportunidade para dividir as mesmas idéias com você. Um
dirigente que nutre sua compaixão não precisa depender de meios
violentos.”
O rei exclamou, “Maravilhoso! Verdadeiramente maravilhoso! Suas
palavras são as mais inspiradoras! Você verdadeiramente é o iluminado!
Eu prometo refletir em tudo o que disse hoje. Eu penetrarei em suas
palavras, que contêm muita sabedoria. Mas por agora, por favor,
permita-me perguntar uma questão simples. Ordinariamente, amor realmente
contém elementos de discriminação, desejo e apego. De acordo com você,
este tipo de amor cria preocupação, sofrimento e desespero. Como pode
alguém amar sem desejo e apego? Como posso evitar criar preocupação e
sofrimento no amor que sinto pelos meus filhos?”
O Buda respondeu, “Nós precisamos olhar para a verdadeira natureza de
nosso amor. Nosso amor deveria trazer paz e felicidade aos que amamos.
Se nosso amor é baseado em um desejo egoísta de possuir outros, não
seremos capazes de levar até eles paz e felicidade. Ao contrário, nosso
amor os fará se sentirem em uma armadilha. Tal amor não é mais que uma
prisão. Se as pessoas que amamos são incapazes de serem felizes devido
ao nosso amor, eles acharão uma maneira de se libertar. Não aceitarão a
prisão do nosso amor. Gradualmente o amor entre nós se tornará raiva e
ódio.”
“Majestade, você ouviu a tragédia que aconteceu dez dias atrás em
Savatthi devido ao amor egoísta? A mãe sentiu que tinha sido abandonada
pelo seu filho quando ele se apaixonou e casou. Ao invés de se sentir
como se houvesse ganho uma filha, ela apenas sentiu que havia perdido
seu filho e se sentiu traída por ele. Por isso, seu amor se tornou ódio e
ela pos veneno na comida do jovem casal matando ambos.”
“Majestade, de acordo com o Caminho da Iluminação, amor não pode existir sem entendimento. Amor é
Entendimento. Se você não pode entender, não pode amar. Maridos e
esposas que não se entendem, não se amam. Irmãos e irmãs que não se
entendem, não se amam. Pais e filhos que não podem se entender, não
podem se amar. Se você quer que seus amados sejam felizes, você deve
aprender a entender seus sofrimentos e suas aspirações. Quando você
entende, saberá como aliviar seus sofrimentos e como ajudá-los a tornar
realidade suas aspirações. Isto é verdadeiro amor. Se você quer apenas
que seus amados sigam suas próprias idéias e ignora suas necessidades,
não é um verdadeiro amor. É apenas desejo de possuir o outro e uma
tentativa de atender às suas próprias necessidades, que não podem ser
preenchidas deste modo.”
“Majestade, o povo de Kosala tem sofrimentos e aspirações. Se você
não puder entender esses sofrimentos e aspirações, não será capaz de
verdadeiramente amá-los. Todos os oficiais de sua corte têm sofrimentos e
aspirações. Entenda esses sofrimentos e aspirações e descobrirá como
ser capaz de dar-lhes felicidade. Graças a isto, eles se manterão leais a
você por toda vida. A rainha, o príncipe e a princesa têm seus próprios
sofrimentos e aspirações. Se você puder entendê-los, será capaz de
trazer-lhes felicidade Quando cada pessoa desfruta de felicidade, paz e
alegria, você mesmo conhecerá felicidade, paz e alegria. Este é o
significado do amor de acordo com o Caminho da Iluminação.”
O rei Pasenadi estava profundamente emocionado. Nenhum outro mestre
espiritual ou padre brâmane alguma vez abriu a porta de seu coração e
permitiu a ele entender as coisas tão profundamente. A presença deste
mestre, ele pensou, era de grande valor ao país. Ele queria ser um
estudante do Buda. Depois de um momento de silêncio, ele olhou ao Buda e
disse, “Eu te agradeço por jogar tanta luz sobre essas questões para
mim. Mas há uma coisa que permanece ainda me aborrecendo. Você disse que
o amor baseado no apego e desejo cria sofrimento e desespero, enquanto o
amor baseado na compaixão traz apenas paz e felicidade. Mas ainda assim
eu vejo que o amor baseado no caminho da compaixão mesmo não sendo
egoísta ainda pode trazer dor e sofrimento. Eu amo meu povo. Quando eles
sofrem devido a algum desastre natural como um tufão ou enchente, eu
sofro também. Eu tenho certeza que se passa o mesmo com você. Certamente
você sofre quando você vê alguém doente ou morrendo.”
“Sua questão é muito boa. Graças a esta pergunta você poderá entender
mais profundamente a natureza da compaixão. Primeiramente, você deveria
saber que o sofrimento causado por um amor baseado no desejo e no apego
é milhares de vezes maior que o sofrimento que resulta da compaixão. É
necessário distinguir entre os dois tipos de sofrimento – um que é
inteiramente inútil e serve apenas para perturbar nossa mente e corpo e o
outro que nutre a capacidade de cuidar e a responsabilidade. O amor
baseado na compaixão pode prover a energia necessária para responder aos
sofrimentos dos outros. O amor baseado no apego e desejo pode apenas
criar ansiedade e mais sofrimento. Compaixão provê o combustível para
ações que ajudam e para o serviço. Grande rei, compaixão é extremante
necessária. A dor que resulta da compaixão pode ser uma dor útil. Se
você não pode sentir a dor da outra pessoa, não é realmente humano.”
“Compaixão é o fruto do entendimento. Praticar o Caminho da
Consciência é perceber a verdadeira face da vida. Esta verdadeira face é
impermanência. Tudo é impermanente e sem um eu separado. Tudo deve um
dia se extinguir. Um dia seu próprio corpo se extinguirá. Quando uma
pessoa vê dentro da natureza impermanente de todas as coisas, seu modo
de olhar se torna calmo e sereno. A presença da impermanência não
perturba seu coração e mente. E, portanto os sentimentos de dor que
resultam da compaixão não carregam a amarga e pesada natureza que outros
tipos de sofrimento fazem. Pelo contrário, compaixão dá a pessoa grande
força. Grande rei, hoje você ouviu algumas doutrinas básicas do Caminho
da Libertação.”
(Do livro “Old Path White Clouds” sobre a vida do Buda – Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)
Fonte:Sangha Virtual Estudos Budistas
Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh