A veia de cientista do médico Alvaro
Avezum o levou a ser um dos pioneiros na investigação sobre questões
espirituais e doenças cardiovasculares.
Texto: Regina Célia Pereira | Foto: Divulgação | Ilustração: Gustavo Duarte
O vaivém na sala apertada do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia,
em São Paulo, é um retrato do dia a dia do médico Alvaro Avezum. Ora
entram alunos pedindo orientação, ora algum colega vem comentar um
trabalho, ora a secretária chega com uma pilha de solicitações... Tudo
isso enquanto o cardiologista recebe BONS FLUIDOS, em um período marcado
por viagens, aulas, congressos, consultas, enfim, um verdadeiro
corre-corre. Algo bem típico de alguém que escolheu a medicina como
profissão e não se esqueceu disso com os anos. Dono de um extenso
currículo – centenas de artigos publicados em periódicos médicos
nacionais e internacionais e dezenas de pesquisas em renomadas
instituições – o professor, de 51 anos, nascido em São Joaquim da Barra,
no interior paulista, trouxe para o Brasil o que os experts chamam de
medicina baseada em evidências. “Estudei na Universidade McMaster, em
Ontário, no Canadá, que é considerada o berço do conceito”, diz. O termo
refere--se àquilo que está comprovado cientificamente e que deve ser
aplicado na prática clínica.
Com um perfil de cientista como esse fica difícil imaginar que Avezum é
um dos pioneiros, no país, nos estudos que relacionam espiritualidade e
saúde cardiovascular. Até sua simpática secretária, Simone, conta que
ficou surpresa ao deparar com informações a respeito do assunto na tela
do computador do chefe. “Vai longe a época em que ciência e assuntos
espirituais não se misturavam”, revela o médico aos desavisados.
Responsável pela disciplina de pesquisa e medicina cardiovascular do
Dante Pazzanese, entidade associada à Universidade de São Paulo, ele
criou, no início de 2013, um grupo de pesquisa dentro da Sociedade
Brasileira de Cardiologia. “Embora exista comprovação em torno do papel
da religiosidade na redução de mortalidade, ainda há muitas incertezas e
são essas dúvidas que nos movimentam a buscar algo mais”, opina.
Para Avezum, o cenário atual aponta para a necessidade de se criar um
novo padrão na medicina. O professor estabelece uma comparação que ajuda
a visualizar: “Para concluir que o tabagismo é um fator de risco ao
coração, foram necessárias mais de cinco décadas de estudos”.
Antigamente, o cigarro tinha todo o glamour e não levantava nenhuma
suspeita de vilão. “As visões e condutas em saúde mudam sempre, o
conhecimento vai se acumulando até que aconteça a ruptura com o modelo
anterior e surja um novo paradigma”, esclarece. “Pode levar um bom
tempo, mas as questões espirituais ainda farão parte das recomendações
médicas”, diz.
O senhor diz que um ateu ou agnóstico pode ser mais espiritualizado do que um religioso. Poderia comentar?
Primeiro, é preciso entender e distinguir conceitos. Quando falamos em
religião, estamos nos referindo a um conjunto de rituais, crenças,
dogmas, enfim, um sistema que reúne todos esses fatores e que cada um
procura de acordo com suas afinidades e com o seu modo de vida. A
religiosidade é a maneira como cada pessoa dedica seu tempo a essas
escolhas, isto é, como coloca a religião em sua vida. Nesse caso, pode
ser de forma extrínseca – medida pela sua frequência aos templos e aos
cultos e a sua dedicação a estudos e leituras, seja da Bíblia, do Torá,
do Corão, enfim... – ou de maneira intrínseca, que é como o indivíduo se
utiliza desse aprendizado dentro do seu cotidiano. A discussão no
ambiente científico está relacionada com a espiritualidade, que, embora
contemple religiosidade, independe de filiação religiosa. O conceito
envolve o que transcende o material. Tem relação com o enfrentamento a
determinadas situações do cotidiano, especialmente as mais complicadas, e
com as emoções que movimentamos. Inclusive é possível mensurar por meio
de escalas o grau de espiritualidade de uma pessoa.
Como se dá essa medição, doutor?
Existe um instrumento, um tipo de questionário validado por metodologia
científica, que avalia tolerância, perdão, paciência, mágoa, desejo de
vingança, ressentimento, enfim, sentimentos que sinalizam se a pessoa
tende a ser mais positiva no enfrentamento, o que sugere que seja mais
espiritualizada, ou, por outro lado, se tem uma tendência ao negativo, o
que teria relação com um grau menor de espiritualidade.
E sobre fé, como o senhor a define?
É aquilo em que se acredita, é a confiança de que as coisas vão
caminhar de um jeito adequado, tem tudo a ver com o otimismo. É a
confiança com convicção. Não é algo teórico. Ela pode ficar mais robusta
ou mais fraca em determinados períodos e cenários. E aqui, outra vez,
não é necessário ter nenhuma filiação religiosa. Muitas pessoas dão
verdadeiras demonstrações de fé sem frequentar igrejas ou outros
templos.
O senhor tem alguma história de paciente que sinalize a importância da fé para a saúde?
Sim, há vários exemplos, mas prefiro guardar no meu consultório por
questão de confidencialidade. O que posso dizer é que essas experiências
estimulam a busca pelo conhecimento sobre o assunto.
Por que pesquisar espiritualidade e saúde cardiovascular?
Tenho a mente inquieta. Interesso-me pelo assunto desde a época da
minha formação. O verdadeiro cientista precisa estar aberto para o que é
novo, ele não deve ser dogmático, precisa questionar e buscar entender
os porquês e por isso é fundamental jamais deixar as janelas fechadas
para a novidade. À medida que o tempo avança, a nossa prática clínica é
alterada, posso afirmar que já aconteceram muitas mudanças desde que fiz
a residência médica e obviamente elas continuarão acontecendo. Acredito
que é necessário construir um novo paradigma na medicina. O tema é
bastante promissor, justamente porque existem muitas sugestões
preliminares de que a espiritualidade favoreça desfechos positivos em
doenças. Embora ainda não tenhamos a verdade cristalina, há diversas
pistas a seguir. Tem algo que escapa ao pensamento convencional e que,
portanto, merece nossa investigação com todo o rigor científico.
Poderia falar mais sobre esses achados?
Na literatura científica há evidências que mostram a atuação do
enfrentamento positivo na saúde cardiovascular. A forma como usamos
nossas emoções, seja o perdão, a honestidade, a disciplina, o altruísmo,
enfim, elas interferem no nosso organismo. Não à toa trabalhos
relacionam a espiritualidade com uma baixa na mortalidade por males
cardíacos.
Na sua opinião, quais são os mecanismos por trás desse elo?
O primeiro indício está relacionado com o fato de que os mais
espiritualizados tendem a se cuidar melhor. Também existem evidências de
que há maior equilíbrio de hormônios e outras substâncias, caso do
cortisol e da adrenalina (hormônios associados ao estresse), que, em
excesso, podem causar o aumento da pressão arterial. Aliás, há estudos
que mostram um impacto do enfrentamento positivo no controle da
hipertensão.
Entretanto...
O modelo atual de vida que nós estamos levando está nos adoecendo. E
não faltam provas de que quem passa por situações de estresse constante
pode sofrer uma série de reações no corpo, que, entre outras coisas,
dispara inflamações na parede interna dos vasos sanguíneos, arritmias e
outros tantos males. Aliás, cada vez que um problema vem à tona
novamente, por meio das lembranças, ocorrem novas descargas dessas
substâncias e esse processo faz aumentar o risco para distúrbios como a
aterosclerose – a formação de placas de gordura – que podem culminar em
infarto ou derrame. Daí a importância do enfrentamento positivo. A
doença na sua origem é força de emoções, sentimentos, enfrentamentos
negativos e positivos fluindo de dentro para fora e, por isso,
possivelmente pode ser erradicada por impulso da mesma natureza. É
fundamental tanto receber os cuidados médicos e medicamentos corretos
quanto ajustar alguns conceitos e emoções para viver essas situações.
Virar a página é saudável. Relevar e perdoar tem efeitos terapêuticos.
Claro que ninguém vive num mundo encantado, onde se deve aceitar tudo,
mas é preciso ter mais tolerância. Quem é solidário cultiva um ambiente
saudável.
O senhor poderia falar sobre a evolução dos estudos nessa área?
Nós, do Instituto Dante Pazzanese, coordenamos, junto com dezenas de
países, um grande estudo, com mais de 30 mil pessoas, durante dez anos,
que avaliou algumas causas para males como o infarto. O trabalho
publicado em 2004 e conhecido no meio médico como Interheart foi um dos
pioneiros na inclusão de fatores psicossociais, caso do estresse e da
depressão, entre os gatilhos para os males cardíacos. A partir dele essa
dupla ganhou força e se juntou ao tabagismo, ao sedentarismo, à
hipertensão e ao colesterol alto como os principais desencadeadores de
doenças que acometem as artérias. O estudo também estimulou a busca de
outros elementos e de modelos de pesquisa para avaliar o impacto da
saúde mental, do suporte social e do comportamento na doença
cardiovascular. Hoje é possível afirmar que as pesquisas envolvendo
emoções e espiritualidade mostram um crescimento exponencial, o que
reforça a necessidade de rigor científico na avaliação. Aliás, muitos
alunos meus têm interesse pelo assunto.
Quanto ao grupo de estudos da Sociedade Brasileira de Cardiologia...
O Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular,
vinculado ao Departamento de Cardiologia Clínica da Sociedade Brasileira
de Cardiologia (SBC), surgiu em março de 2013 e já somos 400
associados. A ideia é divulgar informações sobre o assunto e avançar nas
pesquisas no país. Nos Estados Unidos, 84% das escolas médicas têm em
sua grade curricular cursos voltados para o tema e aqui nós ainda
estamos no começo. Como os pacientes sempre querem discutir o assunto, é
importante que os especialistas tenham todo o respaldo. Inclusive já
está crescendo nos consultórios o que chamamos de avaliação integral,
isto é, uma análise que além de esmiuçar a história clínica e social,
que engloba desde sintomas, hábitos, histórico de doenças da família,
busca, ainda que de maneira informal, avaliar as questões emocionais, os
valores éticos e como se dá o enfrentamento em determinadas situações.
Percebo que entre os profissionais o interesse pelo assunto está
aumentando. Aliás, no último congresso da SBC tivemos duas
mesas-redondas voltadas para a questão e foi um sucesso. É um grande
feito levar o tema para esse ambiente acadêmico, que é bastante rígido.
O senhor tem religião?
Sou espírita, mas sempre enfatizo que nossas pesquisas independem de
filiação religiosa. Gosto de deixar isso bem claro porque a humanidade
tem mostrado muita confusão em torno de questões que envolvem religião.
Digo que é possível viver sem religião, mas não sem espiritualidade.
Seria correto afirmar, então, que é um homem espiritualizado. Prefiro
dizer apenas que a espiritualidade faz parte do meu dia a dia.
fonte : casa.abril.com.br
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