Leia este poema bem devagar, pois cada imagem merece a preguiça do olhar.
“No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta
e, sobre ela, o dia inteiro
entre o planeta e o sem-fim
a asa de uma borboleta”.
É
pequeno, mas diz tudo. Nada lhe falta, Uni-verso. Nenhuma palavra lhe
poderia ser acrescentada. Nenhuma palavra lhe poderia ser tirada. Assim
se faz um poema, com palavras essenciais. O poema diz o essencial.
O
essencial é aquilo que se nos fosse roubado, morreríamos. O que não
pode ser esquecido. Substância do nosso corpo e da nossa alma. Por isto
as pessoas se suicidam: quando se sentem roubadas do essencial,
mutiladas sem remédio, e a vida, então, não mais vale a pena ser vivida.
Os
poetas são aqueles que, em meio a dez mil coisas que nos distraem, são
capazes de ver o essencial e chamá-lo pelo nome. Quando isso acontece o
coração sorri e se sente em paz.
Encontrou
aquilo que procurava Kirilov, personagem de Dostoievski assim descreve o
encontro com o essencial. “Há momentos em que a gente sente de súbito a
presença da harmonia eterna. É um sentimento claro, indiscutível,
absoluto. Apanhamos de repente a natureza inteira e dizemos ‘é
exatamente assim!’ É uma alegria tão grande! Se durasse mais de cinco
segundos a alma não o suportaria e teria de desaparecer. Nesses cinco
segundos vivo uma experiência inteira, e por eles daria toda a minha
vida, pois eles bem o valem”.
Chamava-se Norma. Estava doente,
muito doente. Na véspera de sua morte, arrastou-se até o banheiro e foi
até a pia para lavar-se dos vômitos. Abriu a torneira e a água fria
escorreu sobre as suas mãos. Ela parou como que encantada pelo líquido
que a acariciava. E de sua boca saíram estas palavras inesperadas: “A
água… Como é bela! Sempre que a vejo penso em Deus. Acho que Deus é
assim…”.
A morte na pia… A água que escorre… Os olhos contemplam a
eternidade… O universo essencial de Norma está cheio de fontes frescas e
regatos transparentes onde brincam as suas mãos.
O nome do filme
eu nem me lembro. Sei que se passava no Japão, um casal de velhinhos. A
esposa havia morrido. Os filhos, reunidos para a divisão das coisas
deixadas. De repente percebem uma ausência. O pai, onde estará? Pois não
estava ali, entre eles. Depois de uma longa espera aflita, lá vem o seu
vulto, banhado pela luz do crepúsculo.
“Papai, onde foi? Estávamos preocupados!”.
“Onde fui? Fui ver o pôr-do-sol. É tão bonito…”.
Os
filhos repartem os despojos. Os olhos do pai contemplam o horizonte
colorido… O universo essencial do pai está cheio de pores-do-sol. Sem
eles os seus olhos ficariam eternamente tristes.
Este poema é de Brecht:
“Quando no quarto branco do hospital
acordei certa manhã
e ouvi o melro, compreendi bem.
Há algum tempo já não tinha medo da morte.
Pois nada me poderá faltar se eu mesmo faltar.
Então consegui me alegrar com todos os cantos dos
melros depois de mim…”.
A
morte branca no quarto de hospital. Fora, o melro canta. Alegria pelos
cantos que não ouvirei. No universo essencial de Brecht, o canto dos
melros continuará, sem fim.
“Pergunto se, depois que se navega,
a algum lugar, enfim, se chega …
O que será talvez até mais triste.
Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas
companhias…”.
Cecília Meireles sabia o que era essencial. No seu mundo as barcas navegariam as águas e gaivotas planariam pelos ares…
O que é essencial?
Os
filósofos antigos reduziam o essencial a quatro elementos fundamentais:
a água, a terra, o ar e o fogo. Concordo com eles. Pensavam estar
fazendo cosmologia, mas estavam fazendo poesia. Sabiam dos segredos da
alma.
Pois é disto que somos feitos. Posso imaginar um mundo sem
que eu sinta por isto, nenhuma tristeza especial. Mas não posso pensar
um mundo sem a chuva que caí, sem regatos cristalinos, sem o mar
misterioso… Não posso imaginar um mundo sem o calor do sol que agrada a
pele e colore o poente, sem o fogo que ilumina e aquece… Não posso
imaginar um mundo sem o vento onde navegam as nuvens, os pássaros e o
cheiro das magnólias…
Não posso imaginar um mundo sem a terra
prenhe de vida onde as plantas mergulham suas raízes… São estes os
amantes com que a vida faz amor e engravida, de onde brota toda a
exuberância e mistério deste mundo, nosso lar. Não preciso de deuses
mais belos que estes.
Ouço, pelo mundo inteiro, em meio ao barulho
das dez mil coisas que fazem a nossa loucura, as vozes-poema daqueles
que percebem o essencial. Elas dizem uma coisa somente: “Este mundo
maravilhoso precisa ser preservado”. Mas ouço também a voz sombria dos
que perguntam: “Conseguiremos?”.
Rubem Alves
O Retorno e Terno: crônicas. 27ª Edição. Campinas, Editora Papirus, 2008
Conheça o Instituto Rubem Alves e faça parte de seus projetos.
Conheça o Instituto Rubem Alves e faça parte de seus projetos.
A quem interessar: o poema inicial da crônica é de Cecília Meireles e chama-se “Canção Mínima”. (Antologia Poética, 1963).
Nenhum comentário:
Postar um comentário