Fibromialgia não é coisa da sua imaginação
Durante décadas, pacientes com fibromialgia visitaram
consultórios de diferentes especialidades procurando alívio para suas
dores. Questionados sobre o local da dor, era comum a resposta
“pergunte-me onde não dói”. Os exames, entretanto, não revelavam nada:
nenhuma lesão muscular, nenhuma inflamação. O paciente peregrinava de
clínicos para reumatologistas até, enfim, chegar a um psicólogo, às
vezes convencido de que a dor só existia na sua imaginação.
Como as dores geralmente são musculares ou localizam-se nas
articulações, durante muito tempo cabia aos reumatologistas
investigá-las. Porém, estudos apontam que esta seria uma doença da área
dos neurologistas. O cérebro de quem tem fibromialgia processaria a dor
de maneira exagerada. Estima-se que uma pressão de até quatro quilos não
provoque dor na maioria das pessoas, mas bem menos que isso já é
suficiente para disparar dor intensa em quem tem a doença.
“Desde a década de 1980 já havia estudos mostrando que pacientes com
fibromialgia tinham neurotransmissores de dor, como a substância P (de
“pain, “dor” em inglês), em maior quantidade. Dos anos 2000 para cá, com
o avanço da neurociência, passou a ser possível mostrar em exames essa
diferença”, explica o dr. Eduardo dos Santos Paiva, presidente da
Comissão de Dor, Fibromialgia e outras Síndromes de Partes Moles da
Sociedade Brasileira de Reumatologia.
SINTOMAS E DIAGNÓSTICO
É possível detectar a reação exagerada do cérebro a estímulos por
meio de uma Ressonância Magnética Funcional, mas esse é um exame
extremamente caro e trabalhoso e exige profissionais especializados e
experientes para ser realizado, o que faz com que não seja aplicado
rotineiramente e fique praticamente restrito ao uso em estudos.
Geralmente, a investigação conta muito com o relato do próprio paciente e
com exames para descartar doenças que possam ter sintomas similares,
como espondilites, polimialgia reumática, hipotireoidismo e mieloma múltiplo, um tipo de câncer que acomete mais pessoas acima dos 65 anos.
Em geral, o primeiro indício de fibromialgia é uma dor localizada que
persiste e, com o tempo, evolui e se alastra para tornar-se difusa,
assemelhando-se à dor que toma o corpo todo após uma gripe forte.
Normalmente a dor surge sem motivo, mas às vezes pode ser desengatilhada
por traumas psicológicos, físicos, como uma lesão provocada por um
acidente de carro, ou infecções.
Até os anos 1990, usava-se um mapa elaborado por 20 reumatologistas
para testar a sensibilidade do paciente. Os 18 pontos distribuídos pelo
corpo eram os mais citados por pacientes como locais doloridos. São
simétricos bilateralmente, e a maioria se concentra acima da cintura.
Alguns deles, em especial na nuca, nas escápulas e na parte externa dos
cotovelos, ao serem pressionados provocavam gritos de dor.
Ainda assim, a dor da fibromialgia é diferente das dores agudas, como
as causadas por um corte ou uma porta que se fecha violentamente sobre
um dedo. A dor aguda gera uma reação fisiológica, a pessoa sua, berra.
Já à dor crônica a pessoa vai se adaptando e passa a conviver com ela no
dia a dia. Um paciente fibromiálgico que queira esconder sua condição
consegue falar normalmente, sem demonstrar que está sofrendo. Quando
está habituado à dor, então, vive seu cotidiano aparentemente sem sentir
nenhum desconforto, o que motiva a descrença por parte de quem convive
com ele.
Entende-se que, para haver fibromialgia, é necessário haver dor em
todo o corpo por mais de três meses, na maioria dos dias ao longo desse
período. “Os pontos de dor foram muito usados durante os anos 1990. Hoje
em dia, eles ainda ajudam, mas não são definidores do diagnóstico. É
necessário haver um conjunto de outros sintomas que englobam cansaço
extremo, alteração do sono, da concentração e problemas de memória”,
afirma o dr. Eduardo.
Entre esses sintomas, é marcante o papel da fadiga para
caracterização da doença. Faz parte do processo de diagnóstico um
questionário que visa a avaliar o impacto do cansaço na rotina do
paciente. Ele tem de classificar de 0 a 10 o nível de dificuldade que
enfrentou para realizar determinadas tarefas. E pelo grau de exigência
das tarefas, podemos ter uma ideia do quão intensa pode ser a falta de
energia. Afinal, como é possível se cansar penteando os cabelos?
“É um cansaço diferente, não é uma simples preguiça. Você acorda
totalmente esgotada, sem vontade nenhuma de fazer as coisas”, relata a
contabilista Sonia Folador. Hoje com 56 anos, tinha 45 quando começou a
sentir fadiga, problemas de memória e dor generalizada, mais concentrada
no lado direito do quadril.
Como ocorreu com Sonia, a doença costuma surgir em mulheres entre 30 e
55 anos, embora haja casos de pessoas mais velhas, adolescentes e até
crianças acometidas, compondo no Brasil um contingente de
aproximadamente 5 milhões de pessoas (cerca de 2% a 3% da população,
percentual próximo ao que se estima no mundo).
FARDO FEMININO
Existem dez vezes mais mulheres atingidas que homens. Segundo o National Institute of Arthritis and Musculoskeletal and Skin Diseases,
entre 80% e 90% das pessoas com fibromialgia são mulheres. O machismo
enraizado em nossa cultura mostrou-se muito eficiente para transformar
um fato científico em uma característica inerente ao gênero. Se as
pacientes são mulheres, provavelmente a dor é psicológica, frescura,
drama, sintoma de TPM (Tensão Pré-Menstrual) etc. E assim, gerações de
mulheres passaram a vida resignadas, com dor e outros sintomas. “No
começo não é fácil, a gente não sabe o que é. Antes tudo era reumatismo,
mas a dor não passa e aí você vai vivendo. Depois que a gente descobre
de fato, o tratamento progride”, afirma Sonia.
A ligação entre fibromialgia e o sexo feminino pode estar na
serotonina, neurotransmissor que influencia o sono, a produção de
hormônios, o ritmo cardíaco e outras funções fisiológicas importantes.
As mulheres produzem menos serotonina, e por isso são mais propensas a
problemas como depressão, enxaqueca e transtornos de humor,
principalmente no período de TPM. Como o neurotransmissor também
participa do processamento da dor, talvez esse seja a explicação para o
número muito maior de pacientes mulheres.
Além da forte relação com o sexo feminino, a doença tem laços
estreitos com a depressão. Cerca de 50% dos fibromiálgicos apresentam
também esse transtorno grave, com um quadro agravando o outro: a dor e o
descrédito provocam reclusão, piorando a depressão, que por sua vez
intensifica a dor – de forma real, e não psicológica.
TRATAMENTO
Como a dor da fibromialgia não tem uma origem definida, analgésicos e
anti-inflamatórios não ajudam. Os medicamentos que surtem algum
efeito são os da classe dos antidepressivos e neuromoduladores. Porém,
alguns pacientes podem encarar a prescrição com desconfiança, devido à
imagem negativa que as doenças psiquiátricas têm em nossa sociedade.
Aqueles que tiveram de encarar incredulidade até chegar ao diagnóstico
podem até expressar revolta, interpretando que a sombra da “dor
psicológica” está voltando e que estão sendo tratados de algum
transtorno psiquiátrico. No caso da fibromialgia, entretanto, tais
remédios são usados simplesmente para aumentar a quantidade de
neurotransmissores que diminuem a dor.
Atualmente, a palavra-chave do tratamento para fibromialgia é
atividade física. Mesmo quando o médico decide incluir alguma medicação,
ela serve para permitir a prática de exercícios. É comum, por exemplo,
pacientes dormirem mal. Alguns até dormem horas suficientes para repor
as energias, mas ainda assim acordam cansados (o chamado “sono não
reparador”).
Em um caso desses, receitar um medicamento para facilitar o sono
obviamente melhora a qualidade de vida, mas tem como objetivo final dar
mais disposição para uma atividade física no dia seguinte. “O paciente
tem dificuldade pra entender por que tem tanta dor e não aparece em
nenhum exame, então temos que dar condições para ele ser ativo no
tratamento”, explica o dr. Eduardo.
“Eu acordo e tomo um cafezinho sem vontade de fazer exercício, mas
mesmo assim troco de roupa e vou pra academia todo dia. Faço pilates,
alongamento e natação. Percebo claramente a diferença quando não faço.
Se não vou, parece que fico toda travada, sem querer fazer nada”, relata
Sonia.
A fibromialgia não é considerada uma doença curável. Há casos em que
os sintomas diminuem consideravelmente, chegando a quase desaparecer,
mas há outros em que será necessário fazer controle por toda a vida.
Entender esse fato é fundamental para levar o tratamento da melhor forma
possível. Assim como a retroalimentação que ocorre fibromialgia e
depressão, os sintomas da doença trazem uma série de problemas que se
acumulam e se reforçam. A dor altera o humor, que afeta o rendimento
profissional e as relações sociais, o que aumenta o estresse, que é um
dos gatilhos da dor e assim estende-se ao infinito.
Pacientes não precisam se preocupar com danos graves, como
deformações ou paralisação de membros. Além disso, precisam ter
informação sobre a doença e não se abalarem caso ainda encontrem
profissionais e pessoas que os desacreditem. Mantido o tratamento, a
perspectiva é que as dores regridam ao custo de uma rotina que é
recomendada para a saúde de qualquer ser humano: atividade física
regular.
- Matéria premiada no prêmio SBR/Pfizer de Jornalismo 2016.
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