O seqüestro do corpo é uma das mais cruéis modalidades
contemporâneas da violência. Ritual de profundo desrespeito à condição
humana, esta forma de seqüestro consiste em retirar uma pessoa do local
de sua identificação, de seus significados, subordinando-a a um
tratamento que tem por finalidade estabelecer uma fragilização, que
resultará num estado de total dependência e rendição, em que o
seqüestrador torna-se um legítimo proprietário da existência do
seqüestrado.
O seqüestro do corpo é uma privação total e absoluta daquilo que
chamamos de "horizonte de sentido". O nosso mundo, este particular, mas
integrado ao grande mundo, está solidificado a partir de significados e
significantes que constituem o nosso horizonte de sentido.
Sentido é tudo aquilo que atribui coerência, liga, orienta e
estrutura. É a partir deste horizonte de sentido que pensamos, agimos,
amamos, desejamos, vivemos. Somos e estamos estruturados a partir de
realidades que significam, isto é, realidades que nos revelam e que
condensam um poder de nos fazer avançar os territórios da existência, de
irmos além.
Estes significados assumem os mais diversos formatos em nossa
condição humana. Eles evoluem para a condição de valores e assim se
tornam fundamentais para a qualidade de nossa atuação no mundo. Os
significados qualificam nossa existência.
Essa gama de significados, de valores, ocupa espaços muito
diferentes na vida das pessoas, de maneira que aquilo para uma pessoa é
fundamental em termos de significado, para outra pode ser mero detalhe.
Na vida, estamos constantemente descobrindo o que nos faz buscar
nossa inteireza. A metáfora é interessante e pode nos ajudar a
compreender melhor: o mosaico é feito de partes; essas partes se
conjugam e compõem uma única peça. São inúmeros e pequenos significados
que constroem a trama do mosaico. A pequena peça é fundamental para a
construção do todo, e por isso não pode ser negada, separada. Assim
somos nós.
Se pensarmos no espaço humano em que vivemos como peças de um
mosaico, nós entraremos no cerne dos significados que nos constituem;
nós estaremos no coração de nosso horizonte de sentido.
Quando nos referimos aos significados, nós estamos tratando de
realidades materiais e imateriais. Estamos falando do quarto onde
dormimos, com nossos travesseiros e lençóis, mas também das pessoas que
nos rodeiam e dos amores que nos despertam. O quarto nos identifica, mas
os amores também. O horizonte de sentido é uma conjugação de inúmeros
fatores. A cidade onde moramos, a história já vivida; a casa que nos
abriga; os lugares que freqüentamos; os amigos que temos; as crenças que
professamos; as relações cotidianas, enfim, tudo isso compõe o nosso
mundo particular.
É a partir deste mundo que enxergamos o outro mundo, que não é
somente nosso, mas também nosso, assim como o mirante proporciona ao
observador a visão que só é possível a partir de sua posição geográfica.
Quando uma pessoa é seqüestrada, o primeiro rompimento se dá com a
materialidade de seus significados. Não dormirá em sua casa, estará
privada de seus sabores favoritos, de seus ambientes, coisas
particulares, de seu travesseiro, de seus livros, de seus perfumes, de
suas paredes. Será violentamente exposta a uma outra realidade que não a
sua. O corpo sofrerá a violência de não poder ir e vir. Terá que
obedecer às ordens do recém-chegado, daquele que até então não pertencia
ao seu mundo. Uma pessoa estranha, que definitivamente não faz parte de
seus significados, mas que agora lhe acorrenta o corpo e o faz
experimentar uma privação para a qual não estava preparado.
O seqüestrador, inicia no seqüestrado um processo de privações
extremamente doloroso. Ao ser afastado dos locais de sua identificação, e
passando a viver num ambiente estranho, inóspito e distante de tudo que
o realiza, o seqüestrado mergulha num profundo estado de solidão. Não
se trata de uma solidão comum, dessas que experimentamos ocasionalmente,
e que faz parte do cotidiano de todo mundo. Trata-se de uma solidão
muito mais profunda, caracterizada como "ausência de si mesmo".
Ao ser afastado de seu mundo particular, e de tudo o que ele
representa, o seqüestrado sente-se privado de ser ele mesmo. É como se
ele tivesse sido levado para longe de tudo o que para ele faz sentido. O
seu mundo não é o que agora lhe é oferecido. O cativeiro é a negação do
seu direito de ser e estar. Esse profundo estado de ausência pode
agravar-se com o tempo, e evoluir para o que chamamos de "esquecimento
do ser".
O esquecimento do ser, realidade muito comum nos casos de
seqüestro do corpo, é uma forma de aniquilamento de nossa condição
primeira, nosso estatuto original, e que chamamos de identidade.
A identidade nos diz sobre nós mesmos. Diz a nós e aos outros. Há
dois aspectos interessantes na identificação: uma afirmação e uma
negação. Identificar-se é um jeito que a pessoa tem de afirmar o que é,
mas é também um jeito de afirmar o que não é. Ao identificar-se a pessoa
estabelece uma autenticação, mas também uma separação.
Ao dizer "eu sou isso", naturalmente estou dizendo também "que
não sou aquilo que negaria o que sou". Parece jogo de palavras, mas não
é. Ao identificar que sou Fábio, naturalmente estou dizendo que não sou
Fernando. A identificação é também diferenciação, porque em toda
afirmação há sempre uma infinidade de negações latentes.
Essa identidade necessita ser cultivada. Vivemos constantemente
esse processo. O tempo todo reivindicamos o que somos, e também
renunciamos o que não somos. Identidade estabelece limites, assim como
os conceitos limitam a realidade. Limite que não pode ser considerado
como negativo.
Limitar é delimitar o local do encontro. É um jeito que temos de
não nos perdermos neste mundo de tantas coisas. O limite favorece a
compreensão da realidade existente. Um espaço delimitado é um espaço
encontrado, identificado. Ao identificar o que sou, assumo a
legitimidade de minha natureza. Digo o que posso e também o que não
posso. Por isso o limite é positivo. Ele me proporciona um agir
coerente, porque me posiciona a partir do que sou e não do que eu
gostaria que fosse.
No mundo dos objetos, isso é constante. Identificamos o tempo
todo. Uma mesa é uma mesa e não pode ser uma porta. Pronto, o conceito
identificou, diferenciou, limitou de forma positiva. Ninguém poderá
condenar a mesa por não ser porta. Ela já está no limite do seu
conceito. No mundo das pessoas, é a mesma coisa. Nossa identidade nos
limita, não para nos empobrecer, mas, ao contrário, para nos favorecer o
crescimento. Quem sabe bem o que é e o que não é terá mais facilidade
de explorar suas possibilidades, uma vez que os limites já estão
apreendidos também. Apreender e conhecer os limites que se tem é um
jeito interessante de potencializar as qualidades que nos são próprias.
Portanto, ao negar a identidade de uma pessoa, todas as suas
potencialidades ficam fragilizadas. É por essa razão que o seqüestro do
corpo é uma agressão contra a identidade da pessoa, porque a confunde
profundamente a respeito daquilo que ela pode e daquilo que ela não
pode. É uma forma de provocar um esquecimento do que se é.
Ao ser retirada de seu horizonte de sentido, a pessoa tem negados
todos os seus elementos de identificação no mundo e com o mundo. Dessa
negação nasce a ausência de si mesmo: uma forma de este estar sem estar,
de viver sem viver. Trata-se de uma forma terrível de desolação,
desespero e angústia. O corpo, privado de tudo o que lhe faz feliz, vive
o limite de não ter o que buscar para nutrir-se de alegrias e descanso.
Ele perde a capacidade de identificação, uma vez que está privado de
seu espaço.
Fora de seu horizonte de sentido, o corpo adoece, perde a
vitalidade; sofre na carne a saudade de tudo o que o completa e o faz
ser o que é. Privado de sua liberdade, o corpo sofrerá os limites que
desencadearão a condição de vítima.
"Quando digo o que sou, de alguma forma eu o faço para também
dizer o que não sou. O ‘não ser está no avesso do ser’, assim como o
tecido só é tecido porque há um avesso que o nega, não sendo outro, mas
complementando-o. O que não sou também é uma forma de ser. Eu sou eu e
meus avessos."
Padre Fábio de Melo.
integracaoholistica.blogspot.com
imagem : google
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