Estou enjoado de política.
Olho para as notícias da política com absoluta indiferença. Por vezes o
absurdo é incomum e se torna ridículo. Aí o humor me provoca,
por um curto espaço de tempo, mas logo retorno à realidade. As notícias
são de uma mesmice sufocante. Os mesmos rostos, os mesmos
lugares-comuns, as mesmas frases batidas que nada dizem. Sou tomado por
uma sensação física de paralisia e impotência. Nada posso fazer, em nada
posso acreditar. Meus pensamentos ficam pesados como blocos de
concreto: entidades inertes, mortas, das quais não surge nenhuma vida.
Nietzsche confessava haver se encontrado com o demônio, e que sempre que
isto acontecia todas as coisas leves ficavam pesadas e caíam. O que o
levou a afirmar que o demônio era o espírito da gravidade. Sinto o mesmo
quando vejo as notícias da política.
O que me leva a suspeitar que é
aí que o demônio mora. Por mais que me esforce não consigo me lembrar da
última vez que ouvi alguma coisa inteligente da boca de um político.
Pois a marca de uma coisa inteligente é o seu poder para fazer o
pensamento voar, abrir horizontes, tornar luminoso o mundo, sugerir
alternativas e abrir caminhos novos para o pensamento e a ação.
Não estou sozinho neste desencanto. Guimarães Rosa sentia a mesma
coisa.Dizia que jamais poderia ser um político “com toda esta
charlatanice da realidade.
O curioso”, ele continua, “é que os políticos
estão sempre falando de lógica, razão, realidade e outras coisas do
gênero e ao mesmo tempo vão praticando os atos mais irracionais que se
possam imaginar. Ao contrário dos legítimos políticos, acredito no homem
e lhe desejo um futuro. Sou escritor e penso em eternidades. O político
pensa apenas em minutos.
Eu penso na ressurreição do homem.” Confesso que a minha alma gozava
melhor saúde no tempo da ditadura.Naqueles anos sombrios o pensamento
brincava com a certeza de que aquilo não poderia durar para sempre. Era
impensável que o horror durasse para sempre.Dietrich Bonhoeffer, numa
das cartas que escreveu da cela da prisão de um campo de concentração
nazista, conta que o prisioneiro desconhecido que o antecedera
escrevera, na parede, a sua mensagem de esperança desesperada: “Dentro
de cem anos tudo isto terá terminado.”
Muitas vezes repeti a mesma
frase, embora não me atrevesse a imaginar que o medo pudesse persistir
por tanto tempo. O horror chegaria ao fim e, com ele, um novo tempo.
“Apesar de você amanhã há de ser novo dia...”
O pensamento dançava entre o absurdo e a esperança. De um lado o
noticiário político anunciava o presente. Mas os poetas cantavam um
futuro. O que fazia com que o presente fosse vivido como tempo de
espera, como gravidez, expectativa escatológica.
“Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena,/ embora o pão
seja pouco e a liberdade pequena./ Como teus olhos são claros e a tua
pela morena,/ como azul é o oceano e a lagoa serena,/ como um tempo de
alegria e por trás do terror me acena,/e a noite carrega o dia no seu
colo de açucena,/ como dois e dois são quatro sei que a vida vale a
pena...”
(Ferreira Gullar)
Era noite mas se podiam ver no horizonte as cores da madrugada.
Por isto o pensamento era leve! Por isto as idéias voavam! Por isto se
geravam utopias! Por isto - apesar de tudo - os poetas falavam e o povo
cantava: “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais,
somos todos irmãos...”. Não havíamos sido abandonados pela beleza.
Mas este tempo passou. O tempo do horror chegou ao fim mas o que nasceu
foi um novo horror.
Nosso tempo está vazio. Os poetas estão silenciosos. É noite, sem nenhum
anúncio de madrugada.
Noite sem canções, noite sem sonhos.
A psicanálise descobriu que nós somos sonhos feitos carne.
Músculos, ossos, sangue: sólidas realidades físicas que não podem viver
sem pão. Mas, como dizem os textos sagrados, “o homem não viverá só de
pão”. Nossa carne precisa de sonhos para viver. São os sonhos que moram
neste corpo que desenharão os seus gestos: se ele voará, leve, na
direção das suas esperanças, construindo caminhos e pontes e plantando
jardins, ou se se deixará afundar no charco da tristeza, fazendo apenas
aquilo que a dura luta pela sobrevivência exige. “Sonho, logo existo.”
Aquilo que é verdadeiro para os indivíduos também é verdadeiro para os
povos. Santo Agostinho já sabia disto e dizia que um povo é o conjunto
de pessoas que amam as mesmas coisas, que têm sonhos comuns. Muitos
séculos mais tarde o sociólogo Durkheim iria repetir a mesma coisa,
dizendo que um povo não se faz com coisas materiais. Um povo se faz com
ideais, com esperanças partilhadas. Estava certo o poeta Tagore quando
dizia que o povo pedia canções. Há de haver visões de beleza, utopias de
jardins e de harmonia entre os homens e a natureza, esperanças de paz e
tranqüilidade, e o sentimento bom de que se está construindo um mundo
amigo a ser legado como herança aos nossos filhos.
É por isto que os noticiários políticos só me causam náusea. Pois se
noticia como se o destino do povo se tecesse nas artimanhas do poder.
Mas um povo não nasce do poder; ele é uma criatura do amor. E o poder só
tem sentido quando é uma ferramenta para a realização do amor.
Daí a nossa tristeza, pois o povo não acredita que o poder esteja a
serviço dos seus sonhos. E de tanto ver os seus sonhos abortados achou
melhor deixar de sonhar. Mas não é isto que deveria ser um
político?Aquele que, por ser do povo, sonha os seus sonhos e se dedica a
transformá-los em realidade. Lembro-me das palavras de Miguel de
Unamuno: “Pelo que me diz respeito, jamais de bom grado me entregarei,
nem outorgarei a minha confiança a condutores de povos que não estejam
penetrados na idéia de que, ao conduzir um povo, conduzem homens, homens
de carne e osso, homens que nascem, sofrem e,ainda que não queiram
morrer, morrem; homens que são fins em si mesmos, e não meios; homens
enfim, que buscam a isso a que chamamos felicidade.”
A esperança é de que, distantes da pantomima do poder, os sonhos não
tenham morrido.
Como na história da Bela Adormecida, eles dormem, mais
profundos que pesadelos do cotidiano. E um dia acordarão. E o povo,
possuído pela sua beleza esquecida, se transformará em guerreiro e se
dedicará à única tarefa que vale a pena, que é a de transformar os
sonhos em realidade. Esta é a única política que me fascina. Como o
Guimarães Rosa, vivo na esperança da ressurreição dos mortos.
Rubem Alves
(Correio Popular, 28/01/1991)
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