sábado, 6 de abril de 2013

Os dois mundos de Rumi



Jalal ud-Din Rumi, grande poeta e místico sufi, fundador da primeira escola dos dervixes rodopiantes, viveu entre dois mundos. Rumi fora um grande teólogo e mestre espiritual persa, seguindo a tradição de seu pai, mas foi como o Revelador da Religião (“Jalal ud-Din”), que tornou-se grandioso...

O que Rumi revelava e refletia, tal qual a lua reflete aos raios do sol, era a sabedoria de Shams ud-Din de Tabriz, o Sol da Religião (“Shams ud-Din”): místico “errante” no estilo dos mitos acerca de Lao Tsé, que vagava pela Pérsia e, tendo convivido com Rumi por dois longos momentos, tornou-se para sempre o seu amado, no real sentido do “ser amado”. 

Shams nada escreveu – foi Rumi quem escreveu por ele, quem refletiu sua luz... Quando foi privado pela segunda vez da companhia de Shams (na primeira ele havia se exilado por vontade própria, na segunda foi assassinado por discípulos ortodoxos de Rumi), o grande dervixe passou a dançar e compor poemas melódicos continuamente [1], conforme descreveu seu filho (Sultan Walad):

Noite e dia, em êxtase ele dançava, na terra girava como giram os céus. Rumo as estrelas lançava seus gritos e não havia quem não os escutasse. Aos músicos provia ouro e prata, e tudo mais de seu entregava. Nem por um instante ficava sem música e sem transe, nem por um momento descansava.
Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto. A todos surpreendia que o grande sacerdote do Islam, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa. Por sua causa, da religião e da fé o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor.

Os que antes recitavam a palavra de Deus agora cantavam versos e partiam com os músicos... [2]


Com Rumi fincou-se neste mundo as bases do grande misticismo sufi
Com Rumi, e toda a dor da perda de seu sol amado, fincou-se neste mundo as bases do grande misticismo sufi, e também das danças dervixes, onde os místicos rodopiam em torno de um centro imaginário, da mesma forma que os planetas rodopiam em torno do sol.

José Jorge de Carvalho, tradutor das poesias de Rumi para o português, nos faz um alerta: “É importante que o leitor faça ideia do que seja um gazal [3] de Rumi para avaliar o que perde ao ler a presente tradução, ao tempo de poder valorizar, esperamos, o quanto ainda pode receber de significado e fruição poética. Em qualquer tradução de um gazal persa para uma língua ocidental, sacrifica-se muito esteticamente: a sonoridade, o ritmo do verso, as várias formas de rima, as aliterações, os jogos de palavras.” [2]

O que se segue, portanto, é o que sobrou da luz de sol refletida pela lua de Rumi; e que, ainda assim, delineia com espantosa exatidão os dois mundos em que o grande sufi viveu, ao menos a quem tem olhos para os ver... Estes são dois poemas de Rumi, e cada um nos traz um de seus mundos:

[A evolução da forma]

Toda forma que vês
tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.
Se a forma esvanece, não importa,
permanece o original.

As belas figuras que viste,
as sábias palavras que escutaste,
não te entristeças se pereceram.

Enquanto a fonte é abundante,
o rio dá água sem cessar.
Por que te lamentas se nenhum dos dois se detém?

A alma é a fonte,
e as coisas criadas, os rios.
Enquanto a fonte jorra, correm os rios.
Tira da cabeça todo o pesar
e sorve aos borbotões a água deste rio.
Que a água não seca, ela não tem fim.

Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode ser isto segredo para ti? [4]

Finalmente foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo – um punhado de pó –
vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.

Passa de novo pela vida angelical,
entra naquele oceano,
e que tua gota se torne mar,
cem vezes maior que o Mar de Oman. [5]

Abandona este filho que chamas corpo
e diz sempre “Um” com toda a alma.
Se teu corpo envelhece, que importa?
Ainda é fresca tua alma.


***
[O mundo além das palavras]

Dentro deste mundo há outro mundo
impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
nem a primavera dá lugar ao outono.

Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
o lobo, em belo pastor.

Para mudar a paisagem,
basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares,
basta expressar o desejo.

Fixa o olhar no deserto de espinhos.
– Já é agora um jardim florido!
Vês aquele bloco de pedra no chão?
– Já se move e dele surge a mina de rubis!

Lava tuas mãos e teu rosto
nas águas deste lugar,
que aqui te preparam um fausto banquete.
Aqui, todo o ser gera um anjo;
e quando me veem subindo aos céus
os cadáveres retornam à vida.

Decerto vistes as árvores crescendo da terra,
mas quem há de ter visto o nascimento do Paraíso?
Viste também as águas dos mares e dos rios,
mas quem há de ter visto nascer
de uma única gota d’água
uma centúria de guerreiros?

Quem haveria de imaginar essa morada,
esse céu, esse jardim do paraíso?
Tu, que lês este poema, traduze-o.
Diz a todos o que aprendeste
sobre este lugar. [2]


***
[1] Os poemas de Rumi em homenagem a Shams em sua maioria foram concebidos em transe (dança dervixe) e transcritos quase instantaneamente por seus discípulos, ou ditados deliberadamente a outrem.
[2] Trechos retirados de Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz, de Jalal ud-Din Rumi. Publicado no Brasil pela Attar Editorial.
[3] Estrutura poética, tal qual, de forma aproximada, como um soneto para a poesia do Ocidente.
[4] Lembrando que isto foi dito em pleno século XIII, em meio ao islamismo.
[5] Na simbologia persa, estava associado ao Oceano Divino.
Crédito da imagem: Unveil The Sun

fonte : textospararefexão.blogspot.com

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